Por
Moacyr Scliar
Como a mulher a seu lado, ele era corpulento; e o braço da poltrona, estreito, não acolheria os cotovelos de ambos. Breve estaria desencadeada a luta pelo espaço vital, talvez não tão sangrenta quanto a Segunda Guerra na Europa, mas mesmo assim encarniçada.
Ela tomou a iniciativa. Tão logo o avião decolou, e antes mesmo que a comissária anunciasse: "Nosso tempo de vôo será de..." ela abriu o jornal. Um jornal grande, não um tablóide, não uma revista. Jornalão, com muita coisa para ler, editoriais, artigos, reportagens. E, o jornal aberto, ela naturalmente ancorou o cotovelo no braço da poltrona. Ancorou-o numa posição que não permitiria o ingresso ali de qualquer outro cotovelo.
Ele também tinha um jornal. Ele também era um leitor assíduo. Mas a verdade é que ela se antecipara na manobra, e agora qualquer tentativa dele no sentido de manifestar interesse nas notícias do país e do mundo não passaria de uma medíocre, e até vergonhosa, imitação. Portanto, um a zero para ela.
Mas ele não desistiria. Desistir? De maneira alguma. Como se diz no Sul: "Não está morto quem peleia", e ele ainda tinha muito a pelear. Agora, porém, adotaria uma tática diversa. Uma falsa retirada, destinada a dar à dona do poderoso cotovelo uma ilusória sensação de definitiva vitória. Inclinou a poltrona, bocejou, fechou os olhos e fingiu dormir.
Mas, por entre as pálpebras semicerradas, observava-a. Aparentemente, ela continuava absorvida na leitura. Ele resolveu tentar um ataque sub-reptício, tipo atentado terrorista. Como se fosse um movimento automático, colocou o cotovelo sobre o braço da poltrona. Torceu para que a aeronave entrasse numa área de turbulência, o que acabou acontecendo.
No primeiro solavanco o cotovelo dele empurrou, como que por acidente, o cotovelo dela para fora. E ali ficou triunfante, como aqueles soldados que, na batalha de Iwo Jima, desfraldaram a bandeira americana.
Ela continuava lendo o jornal. Mas ele sabia que, no fundo, ela estava remoendo a raiva e planejando a vingança. Que planejasse. Ele não entregaria jamais a sua conquista.
E aí o problema, o inesperado problema. De repente sentiu vontade de urinar. Muita vontade de urinar. Que fazer?
Se levantasse, perderia o braço da poltrona e nunca mais o recuperaria. Durante longos minutos debateu-se em dúvida cruel. E aí, misericordiosamente, o comandante anunciou que estavam pousando.
Ela fechou o jornal, voltou-se para ele:
- Você sabe que dia é hoje?
Ele não sabia. Ela sorriu, como mãe diante de filho travesso, e revelou: era o aniversário de casamento de ambos. Trinta e cinco anos de matrimônio. Trinta e cinco anos partilhando sonhos, angústias, o cuidado dos filhos. E ah, sim, braços de poltrona em aviões.
CDX
Moacyr Scliar
Como a mulher a seu lado, ele era corpulento; e o braço da poltrona, estreito, não acolheria os cotovelos de ambos. Breve estaria desencadeada a luta pelo espaço vital, talvez não tão sangrenta quanto a Segunda Guerra na Europa, mas mesmo assim encarniçada.
Ela tomou a iniciativa. Tão logo o avião decolou, e antes mesmo que a comissária anunciasse: "Nosso tempo de vôo será de..." ela abriu o jornal. Um jornal grande, não um tablóide, não uma revista. Jornalão, com muita coisa para ler, editoriais, artigos, reportagens. E, o jornal aberto, ela naturalmente ancorou o cotovelo no braço da poltrona. Ancorou-o numa posição que não permitiria o ingresso ali de qualquer outro cotovelo.
Ele também tinha um jornal. Ele também era um leitor assíduo. Mas a verdade é que ela se antecipara na manobra, e agora qualquer tentativa dele no sentido de manifestar interesse nas notícias do país e do mundo não passaria de uma medíocre, e até vergonhosa, imitação. Portanto, um a zero para ela.
Mas ele não desistiria. Desistir? De maneira alguma. Como se diz no Sul: "Não está morto quem peleia", e ele ainda tinha muito a pelear. Agora, porém, adotaria uma tática diversa. Uma falsa retirada, destinada a dar à dona do poderoso cotovelo uma ilusória sensação de definitiva vitória. Inclinou a poltrona, bocejou, fechou os olhos e fingiu dormir.
Mas, por entre as pálpebras semicerradas, observava-a. Aparentemente, ela continuava absorvida na leitura. Ele resolveu tentar um ataque sub-reptício, tipo atentado terrorista. Como se fosse um movimento automático, colocou o cotovelo sobre o braço da poltrona. Torceu para que a aeronave entrasse numa área de turbulência, o que acabou acontecendo.
No primeiro solavanco o cotovelo dele empurrou, como que por acidente, o cotovelo dela para fora. E ali ficou triunfante, como aqueles soldados que, na batalha de Iwo Jima, desfraldaram a bandeira americana.
Ela continuava lendo o jornal. Mas ele sabia que, no fundo, ela estava remoendo a raiva e planejando a vingança. Que planejasse. Ele não entregaria jamais a sua conquista.
E aí o problema, o inesperado problema. De repente sentiu vontade de urinar. Muita vontade de urinar. Que fazer?
Se levantasse, perderia o braço da poltrona e nunca mais o recuperaria. Durante longos minutos debateu-se em dúvida cruel. E aí, misericordiosamente, o comandante anunciou que estavam pousando.
Ela fechou o jornal, voltou-se para ele:
- Você sabe que dia é hoje?
Ele não sabia. Ela sorriu, como mãe diante de filho travesso, e revelou: era o aniversário de casamento de ambos. Trinta e cinco anos de matrimônio. Trinta e cinco anos partilhando sonhos, angústias, o cuidado dos filhos. E ah, sim, braços de poltrona em aviões.
CDX
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